Sem novos modelos e com gargalos na produção, a Ford perde um dos melhores momentos do setor automobilístico no Brasil
A distância aumentou
| 17.04.2008
Marco de Bari
Por Carolina Meyer
EXAME No próximo mês de outubro, a Ford comemora os 100 anos do lançamento de seu modelo mais famoso, o Ford T. Foram mais de 15 milhões de unidades vendidas em 20 anos -- feito que consagrou a Ford como a maior e mais poderosa montadora do mundo. Um século depois, restam poucos sinais dessa exuberância. A Ford atravessa a pior crise de sua história -- só no ano passado a empresa registrou 2,7 bilhões de dólares de prejuízo -- e não há sinais de que a situação melhorará a curto prazo. Para estancar a sangria, Alan Mulally, o presidente mundial da Ford, chegou a penhorar a própria marca. Em meio a uma sucessão de más notícias, o sucesso da operação brasileira dava certo alento aos executivos da montadora, que há quatro anos registrava lucros sucessivos no país -- o último, em 2007, foi de aproximadamente 1,5 bilhão de reais. Isso até o início deste ano. No primeiro trimestre de 2008, as vendas da Ford cresceram apenas 1% em relação ao mesmo período de 2007, segundo dados recentes da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave). No mesmo período, suas maiores concorrentes, Fiat, Volkswagen e General Motors, tiveram crescimento médio de 30% nas vendas. A participação de mercado da Ford, que era de 13% no início de 2007, caiu para menos de 10% no início deste ano, considerado até agora o melhor momento da indústria automobilística brasileira. "A Ford é a única das grandes montadoras que não está conseguindo surfar a onda do setor automotivo", diz um analista de uma grande consultoria.
Há duas razões que explicam esse desempenho da operação brasileira da Ford nos últimos meses. A primeira está relacionada ao ritmo de produção da montadora. A maior e mais moderna fábrica da Ford -- localizada em Camaçari, na Bahia, e considerada modelo mundial de eficiência -- opera no limite de capacidade desde 2004. São 250 000 unidades produzidas por ano -- um carro a cada 80 segundos. Não há espaço físico para aumentar a produção de dois dos modelos de maior sucesso da subsidiária brasileira: o EcoSport e o Fiesta. Nos últimos quatro anos, a demanda por esses dois veículos aumentou cerca de 50%, sem que a produção fosse ampliada. A baixa flexibilidade da outra fábrica da Ford, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, impede que a unidade também produza os modelos de Camaçari. Esse quadro de esgotamento momentâneo da capacidade produtiva -- problema que vem prejudicando empresas dos mais diferentes setores -- foi agravado pelos efeitos de acordos sindicais assinados pela Ford no ano passado. Entre os termos negociados, estava a substituição, na Bahia, das coletivas de fim de ano pela parada dos trabalhos no Carnaval. A linha de produção parou 14 dias em fevereiro. Devido a esse intervalo, deixaram de ser produzidos 12 800 veículos. Resultado: sem carros para abastecer as concessionárias, as vendas do Fiesta no trimestre caíram 21%. No caso do EcoSport, a fila de espera subiu de três para cinco meses. Como acontece com outros produtos, o desabastecimento no varejo costuma ser fatal. Na ausência de sua primeira opção, o consumidor -- agora com crédito farto -- parte para alternativas. "Passamos por problemas circunstanciais e já esperávamos uma redução nas vendas neste trimestre", diz Rogelio Golfarb, diretor de assuntos corporativos da Ford para a América do Sul. "Mas vamos recuperá-las até o fim do ano."
Além dos gargalos na produção provocados pela aceleração sem precedentes da demanda, a Ford tem uma linha de produtos considerada envelhecida por especialistas do setor automobilístico. Dos dez modelos que a montadora vende no mercado brasileiro, apenas três registraram aumento expressivo nas vendas no primeiro trimestre deste ano em relação ao mesmo período de 2007: o Ka, a Ranger e o EcoSport. São justamente os modelos que, no final do ano passado, receberam novas versões, com linhas mais modernas e mais tecnologia embutida. Os demais veículos da marca, concentrados sobretudo no segmento de sedãs e picapes, tiveram queda de, em média, 15% nas vendas em comparação com o primeiro trimestre de 2007 (as vendas do modelo Courier cresceram tímidos 10%). Lançamentos como o C4 Pallas, da Citroën, e o novo Corolla, da Toyota, que chegaram ao mercado entre meados de 2007 e o início deste ano, têm avançado sobre o mercado do Ford Focus e do Fusion. "A indústria automobilística vive de novidades", afirma um consultor próximo à Ford. "E a montadora tem demorado para reagir ao avanço dos concorrentes, mais velozes e ousados."
Os problemas da Ford
Desde o início do ano, a montadora tem deparado com uma série de problemas, que acabaram tendo impacto direto nas vendas. Abaixo, os principais:
Falta de capacidade instalada
Aprincipal fábrica da Ford, em Camaçari, na Bahia, opera no limite desde 2004. Não há espaço para aumentar a produção dos modelos mais requisitados, como o EcoSport
Linha de produto envelhecida
Alguns dos sedãs da Ford, como o Focus e o Fusion, acabaram perdendo espaço para modelos mais novos, como o Corolla, da Toyota, e o C4 Pallas, da Citroën
Paralisação nas fábricas
Entre dezembro de 2007 e fevereiro deste ano, as três fábricas da Ford pararam por cerca de dez dias. Além disso, a fábrica em São Bernardo parou por um mês para adaptar sua linha ao novo Ka. Esse intervalo teve impacto direto nos estoques das concessionárias
PARA TENTAR REVERTER essa situação, a Ford deve atacar em duas frentes. A primeira refere-se à renovação de sua linha de produtos. Mais da metade dos 2,2 bilhões de reais que a montadora pretende investir no Brasil nos próximos quatro anos será dedicada ao lançamento e redesenho dos atuais modelos. Só para 2008, estão previstos quatro novos carros. Um deles, o Edge, produzido no Canadá, deve marcar a estréia da Ford num dos segmentos que mais crescem no país, o de utilitários de luxo. O Focus europeu, um dos maiores sucessos da montadora, também deve chegar ao país. Paralelamente, a Ford vai expandir sua produção regional. Com investimento de 320 milhões de dólares, a empresa vai ampliar em 12% a capacidade instalada de sua fábrica em Pacheco, na Argentina, que enviará mais carros ao Brasil. Outra parte do investimento será alocada para as fábricas brasileiras, com o intuito de aumentar a eficiência das linhas já existentes. Para montar o novo Ka, por exemplo, a Ford já conseguiu um ganho de 26% na produtividade -- o que significa aumento de mais de 15 000 unidades por ano. "Neste ano, a Ford deve aumentar as vendas, mas dificilmente irá recuperar participação de mercado", afirma o consultor Juliano Alquati, da CSM Auto, especializada no setor automotivo.
As dificuldades enfrentadas pela Ford no Brasil chamam a atenção para um problema: o dilema que as empresas enfrentam ao investir em mercados sujeitos a instabilidade econômica e forte oscilação de demanda. Para uma montadora de automóveis, ampliações de linhas de produção implicam desembolsos que podem chegar facilmente à casa do bilhão de reais. Com exceção da Fiat, nenhuma outra montadora deve ampliar significativamente sua capacidade instalada nos próximos dois anos, mesmo com as vendas batendo sucessivos recordes. As subsidiárias se ressentem da vertiginosa queda nas vendas registrada entre 2001 e 2003, logo após a realização de maciços investimentos em novas fábricas. Nesse período, estima-se que o prejuízo acumulado pelas 14 fabricantes de veículos instaladas no país tenha somado quase 5 bilhões de dólares. A Ford, que havia investido mais de 1 bilhão de dólares no projeto de Camaçari entre 1999 e 2002, foi justamente quem registrou as maiores perdas na época: mais de 1,5 bilhão de dólares. Desde então, a montadora aumentou a parcimônia com relação a seus investimentos no Brasil. "É natural que a matriz seja mais cautelosa quanto aos investimentos", afirma Corrado Capellano, da consultoria Creating Value, especializada no setor automotivo. "Qualquer soluço no mercado pode corroer os lucros da subsidiária brasileira." E, em meio à atual crise na matriz, a Ford definitivamente não pode se dar ao luxo de correr esse risco.
Folha Uol